Coutinho Cabral A
Farmacêutico hospitalar. Hospital Sousa Martins – ULS Guarda (Portugal)
Fecha de recepción: 15/08/2019 – Fecha de aceptación: 02/09/2019
Correspondencia: António Coutinho Cabral – Serviços Farmacêuticos – Hospital Sousa Martins – ULS Guarda w Avenida Rainha D. Amélia – 6300-035 Guarda (Portugal)
antonio.clopes@ulsguarda.min-saude.pt
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RESUMO
Objectivos: Avaliar a incidência de lesão renal aguda em pacientes que recebem tratamento concomitante com vancomicina e piperacilina/tazobactam, em comparação com grupos de pacientes tratados com ambos os antibióticos isoladamente ou com vancomicina associada a meropenem.
Métodos: Foram definidos 4 grupos de estudo constituídos por pacientes submetidos aos seguintes regimes de antibioterapia nos últimos 2 anos: um grupo tratado concomitantemente com vancomicina e piperacilina/tazobactam; um grupo tratado apenas com piperacilina/tazobactam; um grupo de pacientes tratados apenas com vancomicina; um grupo tratado com a associação vancomicina e meropenem.
Para cada paciente nos grupos de estudo, foram analisados os valores de creatinina sérica imediatamente antes do início de cada tratamento e após o término do mesmo.
Foi elaborada uma base de dados na qual foram identificados os pacientes, idade, data de início e término do tratamento, valores iniciais e finais de creatinina sérica assim como respectivas diferenças.
Os pacientes foram seleccionados de acordo com os seguintes critérios de elegibilidade: duração do tratamento superior a 72 horas e com valores disponíveis de creatinina sérica imediatamente antes e após o tratamento.
Este estudo utiliza a classificação KDIGO, que define lesão renal aguda quando um dos seguintes critérios é encontrado:
– Aumento da creatinina sérica maior ou igual a 0,3 mg/dL em 48 horas;
– Aumento da creatinina sérica maior ou igual a 1,5x o valor de referência, que se sabe ou presume-se que tenha ocorrido dentro de uma semana;
– Débito urinário inferior a 0,5 ml/kg/h por mais de 6 horas consecutivas.
Resultados: Os resultados obtidos para as amostras analisadas indicam que 30,8% dos pacientes tratados com a combinação vancomicina+piperacilina/tazobactam desenvolveram lesão renal aguda; a amostra com tratamento único com piperacilina/tazobactam apresentou 12% de casos; os grupos tratados com vancomicina isoladamente e com vancomicina associada a meropenem revelaram uma incidência de 7,1%.
Discussão/conclusões: Os resultados obtidos confirmam que há um aumento da incidência de lesão renal aguda em pacientes submetidos ao tratamento concomitante com vancomicina e piperacilina/tazobactam, comparativamente a pacientes tratados com vancomicina ou piperacilina/tazobactam isoladamente ou até com a associação vancomicina+meropenem.
Embora a associação entre lesão renal aguda e o tratamento concomitante com vancomicina e piperacilina/tazobactam seja conhecida e alvo de estudos recentes em vários países, ainda não foi desenvolvido um trabalho de pesquisa nesta área em Portugal, apesar de se tratar de uma opção terapêutica muitas vezes considerada nos hospitais nacionais.
Perante uma situação de antibioterapia empírica, sempre que possível, a combinação de vancomicina+piperacilina/tazobactam deve ser evitada e substituída por outras alternativas mais seguras, particularmente em pacientes com insuficiência renal ou tratados concomitantemente com fármacos potencialmente nefrotóxicos.
Palavras-chave: Vancomicina, piperacilina/tazobactam, meropenem, lesão renal aguda, creatinina.
Acute kidney injury in the concomitant treatment of vancomycin with piperacillin/tazobactam
SUMMARY
Objectives: Evaluate the incidence of acute renal injury in patients receiving concomitant treatment with vancomycin and piperacillin/tazobactam, compared to groups of patients treated with both antibiotics alone or with vancomycin associated to meropenem.
Methods: Were defined 4 study groups consisting of patients submitted to the following antibiotic treatment regimens in the last 2 years: one group concomitantly treated with vancomycin and piperacillin/tazobactam; a group treated only with piperacillin/tazobactam; a group of patients treated with vancomycin alone; a group treated with vancomycin and meropenem in combination.
For each patient in the study groups, serum creatinine values were analyzed immediately prior to the start of each treatment and after the end of treatment.
A database was elaborated in which patient identification, age, start and end date of treatment, initial and final serum creatinine values as respective diferences, were established.
Patients were selected according to the following eligibility criteria: treatment duration greater than 72 hours and with available serum creatinine values immediately before and after treatment.
This study uses the KDIGO classification, which defines acute kidney injury when one of the following criteria is found:
– Increased serum creatinine greater than or equal to 0.3 mg/dL within 48 hours;
– Increased serum creatinine greater than or equal to 1.5x the reference value, which is known or presumed to have occurred within one week;
– Urine output less than 0.5 ml/kg/hr for more than 6 consecutive hours.
Findings: The results obtained for the analyzed samples indicate that 30.8% of the patients treated with the combination vancomycin+piperacillin/tazobactam developed acute renal injury, whereas the sample with a single treatment with piperacillin/tazobactam presented 12% of cases and the vancomycin groups alone and vancomycin plus meropenem showed both an incidence of 7.1%.
Discussion/conclusions: The results obtained, confirm the tendency to increase the incidence of acute renal injury in patients submitted to concomitant treatment with vancomycin and piperacillin/ tazobactam compared to patients treated with vancomycin or piperacillin/tazobactam alone, or with the association vancomycin+meropenem.
Although the association between acute renal injury and concomitant treatment with vancomycin and piperacillin/tazobactam is known and has been the target of several recent studies in some countries, a research work in this field has not yet been developed in Portugal, especially when it is a therapeutic option often considered in national hospitals.
In the context of empiric antibiotic therapy, whenever possible, the combination of vancomycin+piperacillin/tazobactam should be avoided and replaced by other safer alternatives, particularly in patients with impaired renal function or treated concomitantly with potentially nephrotoxic drugs.
Key Words: Vancomycin, piperacillin/tazobactam, meropenem, acute renal injury, creatinine.
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INTRODUÇÃO
As infecções nosocomiais são uma problemática a nível hospitalar, não só pela morbilidade e mortalidade associadas, mas também pela despesa que implicam em termos de recursos hospitalares. A maior susceptibilidade dos doentes de risco e o aparecimento de agentes cada vez mais resistentes aos antibióticos disponíveis são factores determinantes para a sua gravidade.
A necessidade de recorrer, na maior parte dos casos, a associações entre dois ou mais antibióticos de modo a combater este tipo de infecções, abre novas janelas de discussão, sobretudo pela possibilidade de ocorrência de novas interacções ou efeitos adversos, que não eram conhecidos ou atribuídos a cada um dos antibióticos quando utilizados em regime de monoterapia.
A associação de vancomicina+piperacilina/tazobactam (frequentemente prescrita e uma das mais visadas em estudos recentes, a nível mundial, sobre a incidência de lesão renal aguda), estará associada a um aumento dos valores de creatinina sérica em pacientes submetidos a este tratamento com consequente indução de nefrotoxicidade1,5,7,12-14.
A vancomicina é um antibiótico glicopeptídeo que é activo principalmente contra bactérias gram positivas, incluindo o staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA), sendo utilizada em regime de associação com outros antibióticos, como por exemplo a piperacilia/tazobactam (antibiótico de amplo espectro com actividade antipseudomonas)1.
Um dos aspectos a ser considerado aquando a prescrição de um antibiótico, prende-se com a necessidade de averiguar a necessidade de ajuste de dose de acordo com a função renal do paciente, e/ou a presença de outros fármacos que, quando administrados concomitantemente, possam provocar algum tipo de lesão.
A lesão renal aguda (LRA) é definida como sendo o declínio abrupto da função de filtração renal (da capacidade excretora do rim), levando a um aumento transitório de creatinina e corpos nitrogenados de ureia no sangue. É acompanhada frequentemente de oligúria e distúrbios hidroelectrolíticos2,3.
Considerando que uma associação entre vancomicina e nefrotoxicidade está bem documentada4, a piperacilina/tazobactam não é comumente associada a este tipo de lesão. No entanto, estudos recentes têm vindo a referir um aumento da nefrotoxicidade associada ao uso concomitante de ambos os antibióticos5-7. Um mecanismo proposto é a nefrite intersticial aguda associada à penicilina (incluindo agentes semi-sintéticos, como a piperacilina/tazobactam), que pode aumentar a nefrotoxicidade associada à vancomicina8,9.
Embora o mecanismo que esteja na base do desenvolvimento de lesão renal aguda na terapia conjunta de vancomicina com piperacilina/tazobactam ainda não seja totalmente conhecido, algumas hipóteses têm sido consideradas: a lesão renal pode ocorrer como resultado de nefrite intersticial subclínica causada por piperacilina/tazobactam, que é aumentada pelo stresse oxidativo induzido pela vancomicina6; a piperacilina/tazobactam pode ser responsável pela diminuição da depuração da vancomicina, levando à sua acumulação no nefrónio7,10. No entanto, não há nenhuma evidência experimental capaz de fundamentar essas hipóteses.
A incidência de lesão renal aguda em pacientes submetidos a tratamento concomitante de vancomicina com meropenem também está documentada em alguns estudos, sendo mais elevada do que em pacientes que recebem tratamento único com meropenem (carbapenem de largo espectro, activo contra microorganismos gram positivos e gram negativos, aeróbios e anaeróbios)11-13. Atendendo ao facto da associação vancomicina+meropenem ser outra das opções terapêuticas, também comumente utilizada, no tratamento empírico de infecções bacterianas e nosocomiais, já foi demonstrado que é menos nociva para a função renal do que a associação vancomicina+piperacilina/tazobactam14.
A recolha dos valores séricos de creatinina para cada paciente, antes e após cada tratamento em análise15, permite avaliar de que forma cada um dos fármacos isoladamente (vancomicina e piperacilina/tazobactam) e em associação, poderão estar na base de uma maior incidência de lesão renal aguda. Também será interessante perceber de que forma a associação vancomicina+meropenem (caso a situação clínica o permita), possa apresentar menor risco de nefrotoxicidade do que a associação vancomicina+piperacilina/tazobactam.
MÉTODO
Foi realizado um estudo retrospectivo de coorte, que implicou a recolha de dados de pacientes internados no Hospital Sousa Martins da Guarda ao longo de 2 anos (Abril de 2017 a Março de 2019), e que foram submetidos aos tratamentos em análise.
Foi elaborada uma base dados na qual constam a identificação dos pacientes, idade, data de início e fim de tratamento, valores de creatinina sérica inicial e final assim como as respectivas diferenças.
A informação foi obtida para cada paciente, tanto no que diz respeito à antibioterapia instituída durante o internamento como a duração de cada tratamento, através do programa de prescrição electrónica GHAF.
Os pacientes (222) foram seleccionados obedecendo aos seguintes critérios de elegibilidade: duração do tratamento superior a 72 horas e com valores analíticos de creatinina sérica disponíveis, imediatamente antes e após o tratamento.
Os valores de creatinina sérica foram consultados no programa informático modulab.
A partir da amostra total (222 pacientes, 123 homens e 98 mulheres, com uma média de idades de 79,93 – desvio padrão de 12,64) foram definidos 4 grupos: grupo de vancomicina+piperacilina/tazobactam (A – 39 pacientes); grupo de piperacilina/tazobactam (B – 99 pacientes), grupo de vancomicina (C – 56 pacientes) e grupo de vancomicina+meropenem (D – 28 pacientes). A duração média de tratamento foi de 6,74 dias no grupo A (desvio padrão de 3,34); média de 7,69 dias no grupo B (desvio padrão de 1,70); média de 11,65 dias no grupo C (desvio padrão de 5,); média de 11,18 dias no grupo D (desvio padrão de 6).
Este estudo utiliza a classificação diagnóstica KDIGO15, que define lesão renal aguda quando um dos seguintes critérios é encontrado:
– Aumento de creatinina sérica maior ou igual a 0,3 mg/dL dentro de 48 horas;
– Aumento de creatinina sérica maior ou igual a 1,5x o valor de referência, o qual é conhecido ou presumido que tenha ocorrido dentro de uma semana;
– Débito urinário inferior a 0,5 ml/kg/hr por mais de 6 horas consecutivas.
RESULTADOS
Os resultados são apresentados nas tabelas 1 e 2, e na Figura 1.
Discussão
Perante os resultados obtidos, é possível confirmar que existe uma tendência de aumento da incidência de lesão renal aguda em pacientes submetidos a tratamento concomitante com vancomicina e piperacilina/tazobactam (30,8%), comparativamente a pacientes tratados apenas com vancomicina (7,1%), piperacilina/tazobactam (12%) e vancomicina+meropenem (7,1%).
Embora a ocorrência de lesão renal aguda na associação de vancomicina a piperacilina/tazobactam tenha sido alvo de vários estudos nos últimos anos, a sua prescrição continua a ser uma prática comum, e como tal, a pertinência desde estudo deve ser analisada pela inexistência de estudos em Portugal sobre esta relação, assim como pelo desconhecimento da mesma por parte de muitos profissionais de saúde.
Este trabalho pretende, acima de tudo, alertar para a importância de serem consideradas outras opções terapêuticas em pacientes cuja resistência a antibióticos seja uma possibilidade, nomeadamente vancomicina associada a uma cefalosporina antipseudomona (preferencialmente a cefepima, cuja associação já demonstrou eficácia em infecções multi-resistentes e com uma menor incidência de efeitos adversos) ou um carbapenem antipseudomona, cuja segurança, em termos de nefrotoxicidade, também ficou demonstrada5,6,10,12-14.
Quando a única alternativa terapêutica viável for a associação vancomicina+piperacilina/tazobactam, a função renal deve ser monitorizada minuciosamente, sobretudo em pacientes com função renal diminuída ou tratados concomitantemente com fármacos potencialmente nefrotóxicos.
O estudo em questão apresenta algumas limitações e pode estar sujeito a alguns vieses ou factores de confusão (um estudo prospectivo no qual fosse possível controlar todas as variáveis seria indubitavelmente mais rigoroso).
A dimensão da amostra em análise (seria interessante um estudo que envolvesse várias instituições hospitalares nacionais em simultâneo), o período de tempo a que se refere (apenas 2 anos), o facto do distrito da Guarda possuir uma população envelhecida (pacientes com múltiplas patologias associadas e polimedicados, logo maior risco de interacções medicamentosas e reacções adversas), são factores que devem ser tidos em conta na interpretação dos resultados. Além disso, o grupo de pacientes submetidos a tratamento com piperacilina/tazobactam é mais heterogéneo em termos do tipo de internamento, na medida em que é constituído tanto por pacientes internados em serviços cirúrgicos (cirurgia geral e ortopedia) como em serviços médicos (medicina interna e pneumologia), ao passo que os restantes grupos em análise reportam maioritariamente a pacientes internados na medicina interna com diferente perfil clínico e farmacológico.
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver conflito de interesses.
BIBLIOGRAFIA
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12. Comparison of the incidence of acute kidney injury during treatment with vancomycin in combination with piperacillin–tazobactam or with meropenem: Majed S.Al Yami.
13. Prospective Comparison of Acute Kidney Injury During Treatment With the Combination of Piperacillin-Tazobactam and Vancomycin Versus the Combination of Cefepime or Meropenem and Vancomycin: Vincent Peyko, PharmD, BCPS, Samantha Smalley, PharmD, BCPS, Henry Cohen, MS, PharmD, FCCM, BCPP, CGP.
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